terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"Uma “missiva secreta” escrita pra você…" por Lu Guedes

Uma “missiva secreta” escrita pra você…
por Lu Guedes

Sentei-me aqui para ler o horizonte e a varanda começou a contar-me de ti em meio aos seus contornos antigos. Tem tanto de mim aqui nesses cantos. Tem tanto de outras pessoas, algumas delas já se foram. Outras apenas passam por aqui quando não tem outros lugares para ir. Tanto desse lugar já está em repouso, em silêncio e não sei se irá despertar. Creio que o sono profundo será seus sons daqui pra frente. Sinto na pele um anúncio de despedida. Ele parece acenar para mim com todos os seus pretéritos.

Os degraus ali debaixo contam lendas sobre uma menina e seus cachos que nunca tinham ido muito além de meia dúzia de esquinas até chegar até aqui dias antes do primeiro inverno branco de sua vida. Contam também encontros de braços que se vestiam de forma simples e natural. Sorrisos surgiam em meio a palavras carinhosas ofertadas por estranhas meninas das quais os nomes pareciam conhecidos como se o vento falasse delas há tempos… Falam ainda de um velho homem de aparência redonda e amável que movimentava todos os músculos de seu corpo quando gargalhava e levava todos com ele porque aquele som era contagiante. Ele se foi num dia de chuva, como gostava, cavalgando; estava ele em busca de um cavalo assustado, na certa iria acalmá-lo e traze-lo de volta pra casa. Ele sabia como poucos o que eles diziam e pobre daquele que dissesse “cavalos não falam nono” ele nada dizia, mas seu silêncio era feito faca afiada a atravessar as entranhas. Gostava daquele olhar livre de maldade, vestindo apenas descaso. Acho que herdei isso dele. Gosto de pensar que sim…

A casa agora está vazia, silenciosa. Falta o cão a andar de um lado para o outro e sinceramente faltam muitas outras coisas também. Já não é mais como antes. É apenas uma casca com recordações minhas e de tantos outros. Mas as últimas visitas parecem ter ofendido todas essas memórias. Lembro de quanto essa varanda reunia dúzias de olhares, centenas de sorrisos e a felicidade daquele homem que tinha ali naqueles movimentos a sua realização. Ele era feliz na maior parte do tempo e gostava da casa cheia, de amigos, mas preferia os cavalos, como eu prefiro os cães. Tem uma foto dele ao lado da lareira, é onde ficam as fotos das pessoas que já se foram. Uma alusão ao fogo e sua perversa motivação. Tudo dura pouco, não é mesmo? As coisas se acabam e você nem se dá conta disso. Quando abre os olhos numa manhã, percebe a casa vazia, ausente de passos e mesmo assim espera. Fica a centímetros da porta de entrada esperando que todos voltem; mas o passado não é um ioiô e só volta em partes, nada físico, apenas metafísico….

E a paisagem se perde do lado de dentro da gente. As lágrimas visitam a face e a pele fica inebriada. A melancolia toma conta do corpo e você aos poucos vai ouvindo aquelas conversas de fim de tarde, com xícaras e livros na mesa da varanda. A escada desenha passos e trás de volta a ilusão daqueles que não estão mais aqui. O sorriso da menina de cachos floresce por alguns segundos e eu a vejo ali, sentada, com seu livro ao lado daquela dama que ela tanto admirava, esperando pelo homem que hoje é apenas um mito, uma lenda que não desaparece porque ela o leva consigo em suas margens. Eu o vejo chegar com seus braços abertos para onde ela salta com toda a segurança porque sabe que ele a fará voar por cima de todas as coisas demasiadamente humanas.

Mas basta uma leve distração pra tudo voltar ao vazio sem sons ou movimentos. De real, apenas o maldito carrilhão com seus sons que ultrapassam tempo e espaço. Ele assustava a menina em suas primeiras horas, depois passou a ser música para embalar uma juventude que teve suas euforias, seus dramas, decepções, mudanças. Teve tantas coisas e ele narrou a maioria delas. Hoje ele é apenas um móvel articulado que serve para despertar o que ainda resta de ilusão.

A casa está vazia e o eco dos meus passos me incomodam. Quero ir embora e dizer que não vou mais voltar, mas é mentira porque por enquanto esse cenário é tudo que eu tenho de meu. Minha história passa por aqui e essa história que me levou até você. Lembra? Você deu uma dúzia e meia de passos em minha direção e me presentou com o seu abraço. Há tempos que alguém não me abraçava porque eu não queria proximidade com humanos. Até você chegar, eu achava que eu tinha uma maldição reinando em minha derme. Mas você com seu sorriso de menino, seu abraço de homem e seu olhar canino foram ficando e hoje, não importa a distância, sempre há algo para te contar ou algo a ouvir de você…

Menina no sótão…
texto do blog Menina no Sótão

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