sábado, 20 de março de 2010

"Almas gémeas ou parcerias?" - M. Ribeiro Fernandes

O amor precisa de poesia, de beleza,
de sonho. Eles são a chama e apelo
a uma descoberta e aceitação mútua,
que valoriza a relação pessoal.


Uma das mais belas representações do amor é a teoria das almas gémeas, herdeira querida do romantismo. Herdeira, não será bem o termo, pois o romantismo não a inventou, apenas lhe deu ênfase e visibilidade, porque ela já era imemorialmente antiga. Há uma teoria, de tipo esotérico, que diz que, ao incarnar, as características masculinas e femininas da alma se separam, dando origem ao homem e à mulher; depois, seguem o seu ciclo de vida, partem à procura do amor, sentindo a nostalgia da sua cara metade. Só depois de se reencontrarem e conscientemente reconhecerem é que voltam a sentir-se felizes.
1. É frequente encontrar-se na literatura, no falar do povo, na publicidade alusões às almas gémeas. Há muitas expressões populares para traduzir essa realidade íntima do amor, como: “encontrei o amor da minha vida”, “a minha cara metade” e outras. Fazem parte do imaginário popular. Tantos romances inesquecíveis se escreveram (e viveram) baseados nesta atracção inexplicável das “almas gémeas” do amor que se procuram uma à outra como ímanes que só sossegam quando finalmente se encontram e conscientemente se descobrem, romances vividos não apenas como uma atracção química (como hoje se diz) e psicológica, mas também uma atracção espiritual que transcende a dimensão terrestre. Talvez por isso, a teoria das almas gémeas continue também ligada a um certo ocultismo.
2. Mas será que existem mesmo almas gémeas? Não serão elas apenas a metáfora do sonho do amor-perfeito? Ou a metáfora da atracção de toda a criatura pela beleza do seu criador, que Santo Agostinho, um homem genial que viveu apaixonadamente, tão bem sintetizou quando escreveu que o coração humano só encontrará descanso quando finalmente repousar em Deus? Pode haver quem chame loucura à história de amor de Romeu e Julieta, mas a verdade é que toda a gente o admira e, no seu íntimo, o sente como ideal e verdadeiro. A história de Romeu e Julieta continua a ser um símbolo do amor de duas almas gémeas. Um dos mais belos quadros que representa Santa Teresa de Ávila é o de uma mulher apaixonada por Deus e vivendo o êxtase desse amor. Afinal, que seria o homem sem paixão e sem amor? Pouco mais do que um autómato genial.
3. Apesar de belíssima, essa metáfora(ou realidade?) das almas gémeas nem sempre tem sido bem interpretada, o que nos leva a concluir que não basta encontrar o amor para ser feliz, é preciso também cultivá-lo responsavelmente em cada dia. A descoberta da sua alma gémea não resolve por magia todos os problemas de relacionamento do dia-a-dia entre o casal, porque os dois continuam a ser livres e falíveis, capazes de amar mas também capazes de errar. Se não procurarem viver em cada dia o prazer e a alegria desse encontro, podem deitar tudo a perder e afastar-se novamente um do outro. Mas, nem por isso deixam de sentir a nostalgia do amor, como escreveu Pablo Neruda: «É proibido esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque nossos caminhos se desencontraram... Cada um tem seu caminho e sua sorte».
4. Há quem diga que a expressão mais adequada para representar o amor, hoje, seria a da parceria. Está na moda falar-se de parcerias, da colaboração entre duas partes em que cada uma é respeitada como autónoma e independente e, quando se junta com outra, não é para a considerar como dependente de si, mas como igual a si e, cada um com sua especificidade, colaborarem num projecto comum. Quer isto dizer que, hoje, se tende a valorizar mais a autonomia de cada um do que a dependência mútua das partes. A representação do amor incorporou as aquisições sociais de independência profissional e económica de cada um, nomeadamente da mulher, que já não é considerada dependente do homem, porque tem como ele o seu emprego e a sua independência económica. Isso é um facto novo e positivo que modificou a representação social do amor e a vivência do casamento. Hoje, os jovens tendem a sair cada vez mais tarde da casa paterna, o que se torna um fardo pesado para os pais e pode induzir comportamentos de dependência social. Tentam prolongar por mais tempo a sua juventude. Aparentam ser mais individualistas. Comunicam mais entre si por meios instrumentais (telemóvel, internet, etc...) do que pessoalmente. Sentem-se mais inseguros. No entanto, esta aparente experiência de solidão também pode ter o seu lado positivo: ajudam-nos a atingir um nível mais elevado de autonomia e amadurecimento psicológico, contanto que não resvale para dependência parasitária em relação aos pais ou não fomente o isolamento ou outras formas desviantes. Gosto da ideia da parceria pelo que ela exprime de exigência de maior maturidade e de maior respeito mútuo para que os dois possam caminhar, na igualdade da sua diferença, de mãos dadas para a vida, numa união afectiva mais consistente; mas penso que seria uma representação um pouco fria do amor se lhe faltasse a poesia da alma gémea, a sua beleza, o seu calor, o seu entusiasmo. O amor precisa de poesia, de beleza, de sonho. Eles são a chama e apelo a uma descoberta e aceitação mútua, que valoriza a relação pessoal.


Texto de M. Ribeiro Fernandes publicado em Opinião, em 14 de Março de 2010, no Diário do Minho

Sem comentários: